Em “O REMANESCENTE”, Rafael Cardoso revira “a terra escura do passado” de sua família e de um período histórico de horror
Por CLAUDIA NINA – 01-05-2017
Imagine a cena: em um determinado momento da vida, uma revelação muda tudo o que você sempre pensou de suas origens. A história não é bem essa. Esquece o que lhe foi contado. Nomes, geografia e deslocamentos de parentes apontam para uma realidade absolutamente diferente daquilo que sustentou a crença nos alicerces de seu edifício genealógico até o instante nervoso em que o segredo oculto vira a bomba, que vai desmoronar uma infância inteira. A memória fica no vácuo. Será preciso refazê-la. Foi o que aconteceu com Rafael Cardoso que, em vez de enlouquecer, resolveu pesquisar para entender; entender para escrever.
A pedido do pai, a mãe de Rafael rompeu, há algumas décadas, o longo e sagrado segredo familiar ao confessar que os nomes dos avós e dos bisavôs, bem como o do pai eram outros — ele não viera de uma linhagem francesa, como supunha, mas alemã. E a migração fora clandestina, pois o bisavô judeu, banqueiro, ministro das Finanças da Prússia, colecionador de arte e intelectual de esquerda Hugo Simon, amigo de figuras do calibre de Albert Einstein e Thomas Mann, fugira do nazismo ascendente para o Brasil ao lado dos familiares e da mulher, Gertrud. Todos recorreram a identidades falsas.
A maior perplexidade ao ouvir a história verdadeira foi a de que ninguém havia deixado vazar nenhum capítulo do passado soterrado — a mentira fora confecionada em minúcias para que todos acreditassem, inclusive Rafael, que falava em francês com o avô. Por quê? Medo? Vergonha? As vítimas se calaram também quanto a isso, mas é provável que tenha sido uma mistura de todos estes temores.
Rafael Cardoso só veio a saber dos detalhes da origem revelada, quando, aos 23 anos, desmontou a casa dos avós após a morte deles. Foi então que descobriu um arquivo de fotografias, cartas e documentos. Uma cuidadosa arqueologia familiar. As gavetas foram uma espécie de terra escura que era preciso cavar e cavar. Só o começo.
Eis o ponto de partida e chegada de O REMANESCENTE, que refaz este percurso, de retorno aos tempos em que Hugo nem sonhava com a guerra, muito menos com sua completa descaracterização ao precisar fugir durante os anos em que Hitler avançava e a Europa entrava em colapso. Os detalhes, aqueles mesmos que foram negados ao autor quando lhe contaram o segredo, estes ele recupera, inventa, rebusca, a fim de dar absoluta veracidade ao texto — como uma retrospetiva em terceira dimensão.
O processo arqueológico é descrito pelo autor, que participa da história nos chamados Interlúdios:
“No mesmo quarto onde eu e meu irmão dormíamos quando crianças, um tesouro de verdade me aguardava. Sozinho na casa pela primeira vez na vida, reparei numa cômoda de mogno escuro. (…) Nunca lhe dera atenção, mas subitamente despontou na minha mente a lembrança de que a terceira gaveta continha fotografias de família. (…) Ajoelhei-me à sua frente e passei a vasculhar as gavetas, uma a uma. Elas se revelaram uma jazida espantosa de documentos históricos.”
Ao lado dos fatos, vieram as muitas lacunas. As gavetas não disseram tudo. Era preciso cavar mais. O autor submergiu em vários anos de pesquisa nos arquivos da Europa até que, finalmente, algo pudesse ser escrito na forma da ficção — um romance como este precisava de muitos detalhes e de argamassa histórica, ainda que incrementos da fantasia fossem convocados para os ornamentos. O resultado é um livro real, humano, com várias camadas de passado sobrepostas ao presente — “Este livro não é um simples inventário de achados, mas o memorial da enxada que revira a terra escura do passado”, avisa o autor logo de cara, no prelúdio.
Interessante observar a expectativa de medo em relação ao avanço do extremismo na Alemanha, a partir de notícias paralisantes como a Lei para a Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã. Era grotesco e monstruoso demais para ser verdade. Mas era. O autor recupera os possíveis movimentos de seus avós e familiares, como a sequência em que Gertrud sai da sala depois de ouvir o rádio. Passos, temores, pequenos gestos são recuperados como se tivessem existido de fato, tal a riqueza humana deste livro, todo feito de microdinâmicas. Assiste-se ao momento solene em que Hugo reflete sobre o que de si deixará para trás — a arte definitivamente perdida no tempo da atrocidade.
“Hugo ficou sozinho no gabinete, agora renovado pela claridade. Passou a examinar as obras de arte que cobriam as paredes. Na pior das hipóteses, venderia mais uma delas.”
E quando chegam à França, obrigados a passar pelos policiais com os documentos falsos, mais uma vez a dinâmica dos mínimos gestos fala mais alto:
“Voltou-se para Gertrud, na expectativa de que ela respondesse à sua indagação muda, mas encontrou-a paralisada, o olhar fixo na cabeça do policial. O único movimento do seu corpo era um espasmo ocasional da mão esquerda, jogada a seu lado no banco. Nunca antes a vira assim, transfigurada pelo pavor, nem mesmo quando abandonaram Berlim. Hugo apertou a mão dela com força. Ela se assustou com o toque. O silêncio abafado do carro foi se tornando insuportável. Sentiu-se obrigado a rompê-lo…”
Cruzando fronteiras a pé, escondendo-se aqui e ali, mentindo, adulterando a si mesmos, chegam, por fim, ao Brasil, saindo da Espanha. Novamente, falsificações, a luta por se esconderem. Entre eles a tia-avó Ursula (ou Renée?), que se soma às cinco personagens centrais da trama, além do bisavô, dos avós, da bisavó e do pai do autor. No “país do futuro”, Hugo, a uma determinada altura, depois dos primeiros tempos em terras tropicais, em busca do que mais produzir, para onde se virar e no que se transformar, compara-se ao bicho-da-seda, em um dos belíssimos trechos do romance.
“Hugo sentira um estranho parentesco com essas criaturas. Eram, como ele, produtos de uma cultura artificial — o extremo oposto da ideia romântica de natureza que embasava a ideologia de sangue, solo e raça. Embora fossem muito feios, os bichinhos produziam algo de valor e beleza incomensuráveis, um artigo precioso como ouro e feérico como a asa da borboleta.”
E mais: o ex-banqueiro chegava à conclusão de que era necessário “o doloroso processo de fiar seu próprio casulo e se retirar do mundo — morrer um pouco, a fim de renascer em estágio superior”.
Enquanto isso, a Europa estava longe de se recuperar e continuava aos frangalhos — as notícias de lá eram sempre assustadoras. Ou seja, não havia mais como retroceder. Jamais. E o que seria dele, afinal, é a pergunta que lateja próximo ao término no romance. Ele estava em Minas Gerais, sondando ainda as diferenças culturais de uma terra longínqua, mas definitivamente adotada. Aquele seria para sempre um novo mundo, inexplorado, por mais que inventasse cultivos. O que ele era, agora, afinal? A resposta remonta ao título:
“Um homem amputado do seu nome. Que híbrido esquisito se tornara: um judeu sem religião, um banqueiro sem dinheiro, um colecionador sem sua arte. Um agricultor sem uma terra. O que restava era o que ele era. Desse remanescente ele voltaria a se erguer. Estendeu a mão e apoiou-se na borda da mesa. Era fria e dura sob o peso da sua mão. — Sim, estou bem. Ainda de pé, veja só.”
JORNAL O RASCUNHO